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terça-feira, 17 de maio de 2011

CORONELISMO, ENXADA E VOTO.


CORONELISMO, ENXADA E VOTO*

Celina Vargas do Amaral Peixoto
(Socióloga e diretora do Sebrae/RJ)


Este é o título de um livro clássico nas ciências sociais escrito por Victor Nunes Leal, advogado, jurista, homem público editado pela Forense em 1949, e cuja releitura, nesse momento, próximo às eleições municipais do ano 2000, provocou-me algumas reflexões. Segundo o autor, Coronelismo é uma manifestação do poder privado – dos senhores de terras - que coexiste com um regime político de extensa base representativa. Refere-se basicamente à estrutura agrária, que fornecia as bases de sustentação do poder privado no interior do Brasil, um país essencialmente agrícola - monocultor e exportador de matéria prima – naquela época. Mas Coronelismo quer dizer também compromisso, uma troca de favores entre o poder público em ascensão e os chefes locais, senhores da terra, que, decadentes, lutavam pela sobrevivência.
São resultantes deste compromisso algumas características do sistema Coronelista que ainda perduram em nosso país – o mandonismo, o filhotismo, o nepotismo, o falseamento do voto e a desorganização dos serviços públicos locais. O tipo de liderança que caracteriza o coronel é o fato de que ele comanda discricionariamente um lote considerável de “votos de cabresto”. Independentemente de ser originário ou não da Guarda Nacional, sua procedência vem da qualidade de ser proprietário rural, responsável por um conjunto de trabalhadores que gravitam em torno de suas terras. Sobre essas pessoas, os coronéis exercem o poder através de seu prestígio pessoal, mantendo-os numa relação de dependência em que o “voto de cabresto” é uma das moedas de troca.
Segundo dados do IBGE, a população do Brasil, recenseada em 1º de setembro de 1940, estava distribuída segundo a situação dos domicílios em: urbana – 9.189.995 (22,29%); suburbana – 3.692.454 (8,95%); rural – 28.353.866 (68,76%). Portanto, naquela época, a maioria do eleitorado residia e votava no interior do país, com uma predominância do elemento rural sobre o urbano. O mecanismo eleitoral do regime representativo exigia despesas tanto para o alistamento como para o dia das eleições: documentos, transporte, alojamento, refeições, dias de trabalho perdidos, roupa e até chapéu. Tudo tinha um custo a ser pago. Essas despesas eleitorais, em princípio, eram pagas pelos chefes políticos locais.
Em contrapartida, a posição do coronel ou do chefe político diante de seu distrito ou município exigia uma reciprocidade. Era com seu prestígio pessoal que o coronel obtinha realizações de utilidades públicas para a sua localidade, como escolas, estradas, ferrovias, igreja, postos de saúde, luz, rede de esgotos e água encanada. Essas obras tinham por objetivo não só desenvolver o seu espaço, como também construir e preservar a sua liderança e aumentar a dependência política do seu eleitorado. Não é difícil concluir que esses remanescentes do privatismo oriundos da Guarda Nacional instituída em 1831, são paradoxalmente alimentados pelo poder público dos anos 40 através do regime representativo e do sufrágio universal que não podia deixar de contar com o eleitorado rural, maioria no país naquela ocasião.
Victor Nunes Leal aprofunda sua análise falando de um “sistema de reciprocidade”: “de um lado, os chefes municipais e os ‘coronéis’, que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça”. A situação, tão bem descrita pelo autor, apresenta hoje conseqüências desastrosas. Se, nas últimas décadas do século, a população rural correu para as cidades atraída inicialmente pelo processo de industrialização e deixou de usar a enxada como instrumento de trabalho, a relação entre o coronel e o voto parece sobreviver sob novas formas diversificadas do “Coronelismo” no Brasil urbano.
A relação de reciprocidade ganha novos contornos e amplia a sua esfera para outras arenas: a vaga na escola só é concedida pelo vereador; a rede de água e esgoto ou a instalação elétrica compete ao deputado estadual; e os investimentos em transporte ou pólos de desenvolvimento ficam com os deputados federais e os senadores.  As políticas públicas que têm por objetivo melhorar e sustentar os bons índices de Desenvolvimento Humano, como a educação, a saúde e o meio-ambiente, para citar apenas algumas, acabam sempre privatizadas pelas verbas distribuídas diretamente aos parlamentares, pela contratação de cabos eleitorais para assumir funções nobres em órgãos públicos ou pelos “currais comunitários” desenvolvidos pelos “coronéis modernos”.
Este procedimento de utilização direta ou indireta dos recursos públicos mantém, alimenta e conserva a “relação de reciprocidade” e acaba por atender mais à sustentação das lideranças dos “coronéis modernos” em detrimento da implantação, organização e democratização de políticas públicas voltadas para o cidadão e para a sociedade. Às vésperas das eleições municipais do ano 2000, se desejamos construir um país mais justo, solidário e igualitário para nossos filhos, precisamos lutar por políticas públicas e votar em candidatos que defendam valores e uma ética pública para nosso espaço local.


* Artigo publicado no Jornal O Globo em 10 de fevereiro de 2000.

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